A palavra 'waraná' deve entrar no dicionário da Língua Portuguesa!
À Academia Brasileira de Letras e à Academia Amazonense de Letras.
Carta aberta*
Excelentíssimos,
Vimos por meio dessa pedir Vosso apoio na luta que a Nação Indígena Sateré-Mawé está travando em defesa do Fundamento do Conhecimento que a nossa língua, a nossa cultura, a nossa Terra abrigam. Apoio moral, político e intelectual.
Somos nãg nia, na nossa língua algo como "velhos sábios", da Livre Academia do Wará; a Academia de Ciências, Artes e Letras do Povo Sateré-Mawé.
Wará significa "palavra", "conhecimento", "explicação". Wara-na (pr: uaraná), quer dizer: "início de todo conhecimento".
Nossos ancestrais contaram como o wará marcou o nascimento da cultura, da sociedade, do mundo dos seres humanos. Esta é uma historia muito comprida, gravada no nosso objeto sagrado puratĩg. História que os antropólogos, desde Nunes Pereira em diante, relataram muitas vezes coletando a fala dos nossos antepassados, contos que nos guardamos gravados e escritos, e que continuamos contando para nossos filhos e netos, e vamos publicando no nosso Portal (www.nusoken.com) para todo mundo conhecer assim como eles são. Para todo mundo entendê-los pelo significado e pelo sentido verdadeiro que eles têm.
O inicio do conhecimento é uma criança matada pelos próprios tios ciumentos; do olho dela, nasceu um pé de um cipó, um fruto, uma semente torrada e moída, um pão ralado na água, que os colonizadores, adaptando o som à fonética deles, chamaram de "guaraná".
Nós, a Nação dos Mawé, somos os Filhos do waraná. Filhos, assim como filhos da Mãe do waraná são as mudas que colhemos aos pés daquele cipó que nasceu diferente de todos os outros e que os nossos ancestrais encontraram na mata e transplantaram em campo aberto transformando-o em arbusto cultivado. Assim fizemos ao longo dos séculos, desde antes que os conquistadores chegassem. Assim fomos plantando e difundindo o waraná para onde que formos.
Nossas comunidades nasceram junto com o Waraná. Pois sem o waraná consumido ritualmente conforme às regras ensinadas, não teríamos quem nos inspirasse as Belas Palavras que nas reuniões harmonizam os sentimentos e as vontades, levando a entender a realidade e a tomar juntos a decisão certa. Pois o wará é o instrumento da explicação, o wará é o meio da comunicação sem o qual as palavras mal entendidas viram fofoca, briga, engano.
Os não-indígenas não conheceram o verdadeiro valor do que chamavam de guaraná. Usaram-o como energético, afrodisíaco, remédio no geral.
Até o início do século XX só nós plantamos esse arbusto e comercializamos os pães de waraná. Depois, as nossas mulheres foram ensinando aos caboclos como plantar e beneficiar. Ao longo do tempo a produção se espalhou por meio Brasil. Os produtores caboclos de guaraná acabaram caindo sob a dependência da agroindústria, que vai impondo seus métodos de cultivo: monocultura, pesticidas patenteados, adubos químicos patenteados, clones patenteados, para produzir bebidas refrigerantes ou energéticas açucaradas, cheias de conservantes, corantes e aromatizantes artificiais, e que do outro lado da cadeia vão estimulando um estilo de consumo exagerado, dessas bebidas, para diversão, festa e farra. Esse é o "guaraná" no seculo XXI.
Mas o "waraná" continuou sendo outra coisa. Desde que chegou a agroindústria, nosso Povo se recusou de receber pesticidas, adubos químicos e clones. O que aos outros era oferecido com facilitações de crédito, para nos era oferecido de graça. Porém nosso povo todo, mesmo que cortado de suas próprias instituições representativas que nunca eram consultadas, sempre se recusou de receber pesticidas, adubos químicos e clones, mesmo que de graça.
Em primeiro lugar, se recusou porque o waraná merece respeito. Cada cipó ou cada arbusto de waraná faz flores masculinas e flores femininas em épocas diferentes: ele quer ter filhos com outros pés de waraná, e não quer gerar cópias de si mesmo. A planta de waraná é polinizada pelas abelhas nativas da nossa terra, que dão mel, pólen e própolis sacando o néctar das flores de waraná, e que em troca não querem morrer envenenadas pelos pesticidas. Finalmente, quando a mulher do tuxaua rala o waraná na cuia com água para abastecer os convidados que estão reunidos na casa, ela cumpre um ato sagrado. E quando cada convidado se levanta em silencio para tomar um gole dessa água da cuia colocada em cima do patawi, o suporte que simboliza o céu e que ocupa o centro do circulo da reunião, também cumpre um ato sagrado. Quando depois fala, fazendo das próprias palavras inspiradas pelo waraná um simples fio do diálogo a partir do qual o próprio wará irá tecendo uma decisão compartilhada, ele cumpre mais um ato sagrado.
E mais. Quando nosso povo se mobiliza e se organiza para defender o que em 1999 o Tuxaua Zuzu, fundador do Conselho Geral da Tribo Sateré-Mawé, proclamou ser o "sateré-mawé éko ga'apy piat waraná mimotypot sése", um conceito que procuramos fazer entender mundo afora nos termos de "santuário ecológico e cultural do waraná dos Sateré-Mawé", para significar um patrimônio cultural a ser reconhecido nacional e da humanidade, e para apontar o único banco genético do guaraná nativo in situ de fato existente no mundo, que corresponde à Terra Indígena Andirá-Marau, patrimônio da União,..... o nosso Povo cumpre um ato sagrado que não poderia se omitir de cumprir sem deixar de ser si mesmo.
Em segundo lugar, nos recusamos o presente envenenado dos produtos da agroindústria porque faz 23 anos o Conselho Geral da Tribo Sateré-Mawé criou o “Projeto Waraná”. Para explicá-la aos profissionais essa criação foi chamada PAIESM: Projeto Autônomo Integrado de Eco-Etnodesenvolvimento do Povo Sateré-Mawé, mas todo mundo, na nossa Terra e mundo afora, a conhece como “Projeto Waraná”, e com efeito esse é o nome que melhor a representa. Pois esse projeto para nós é nada mais e nada menos do que a realização da profecia de Uniawasap’i, proferida na hora em que, sepultando o seu filho matado pelos irmãos dela e plantando na terra o olho direito dele do qual nascerá o primeiro pé de waraná, ela disse: "Teus tios queriam que tu ficasses um coitadinho, mas não será assim: tu serás grande e irás pelo mundo fazendo o bem de todos os homens".
Assim foi.
Desde 23 anos, para melhorar a qualidade de vida das nossas famílias e tirá-las do assistencialismo, para autofinanciar projetos sociais, para garantir uma autonomia de decisão efetiva da nossa auto-organização, para proteger de toda ameaça a Terra Indígena Andirá-Marau e seus recursos ambientais, para provar que ainda existimos, expressar nossa identidade cultural e contribuir ao desenvolvimento da humanidade, e enfim para fazer letra viva dos artigos 231 e 232 da Constituição da Republica Federativa do Brasil, o Consórcio dos Produtores Sateré-Mawé, entidade autônoma auxiliar do Conselho Geral da Tribo Sateré-Mawé, vende nosso guaraná nativo no mercado nacional e internacional, onde todo mundo o conhece pelo seu Nome: waraná. Waraná foi o projeto indígena brasileiro escolhido na Exposição Universal do ano 2000 na Alemanha como exemplar para a Agenda 21. Waraná foi e é o nome da mais antiga fortaleza de Slow Food / Terra Madre no Brasil, O waraná, não o guaraná, é que foi celebrado no evento organizado pelo CPSM no Pavilhão do Brasil na Exposição Universal de Milão na Itália em 2015 sobre como alimentar o planeta, juntando pela ocasião na sala dos eventos do pavilhão brasileiro parceiros comerciais e de cooperação da Itália toda. Até a Petrobras patrocinou um projeto conosco, e quis justamente chamá-lo "Waraná - agroecologia".......Desde 23 anos, o waraná, com seu próprio nome, é exportado na França e na Itália e de lá distribuído em 22 países do mundo, sempre levando consigo a explicação de como ele é cultivado e cultuado, de como deve ser utilizado e consumido.
Esse então é o waraná. O “waraná sese”, ou seja, o “verdadeiro waraná”. Que é o contrário de tudo o que é falso, “ran”. O “waraná ran”, falso waraná, que nasceu do olho esquerdo e foi jogado fora por Uniawasap’i : antigamente ran foi a espécie chamada Paullinia Cupana Cupana pelos botânicos, do qual os nossos ancestrais domesticaram uma maravilhosa mutação genética que os botânicos chamam Paullinia Cupana Sorbilis; depois o ran foi todo cipó parecido dele e seus frutos, que engana quem não conhece, e hoje “waraná ran”, waraná falso, é o guaraná clonado, envenenado de adubos químicos e agrotóxicos, criado pela agroindústria.
Anos atrás, pensamos que uma forma de proteger esse nome sagrado, que na nossa língua é o nome de todos os nomes, fosse patenteá-lo antes de outros. Chegamos a apresentar, como Conselho Geral da Tribo Sateré-Mawé, um pedido de registro de marca. A marca "waraná" teria sido propriedade do CGTSM. O pedido foi deferido, mas naquela altura escolhemos de não pagar o último boleto e não "comprar os direitos". Escolhemos de não pagar porque não conhecemos ninguém no mundo que tenha patenteado seu próprio Pai.
Porém, com isso, outros o fizeram. O nome waraná hoje é cada vez mais cobiçado pelo renome que o waraná tem. Por quem? Pelos mesmos que levaram o guaraná a ser totalmente outra coisa, outro ser, outro conceito do que o verdadeiro waraná é. É supérfluo fazer os nomes, e não é isso que interessa aqui. Esse ano, 2018, vai ter marca registrada no INPI de bebida com guaraná da agroindústria nomeada “waraná”. Esse ano, 2018, vai ter clone de guaraná, registrado no CGEN chamado “waraná”, na hora em que a palavra waraná é exatamente a palavra que no uso comum e viral define o guaraná nativo, diversificado geneticamente, não clonado, semidomesticado no seu próprio ambiente de eleição.
Em tese, isso é em contradição com a lista dos nomes indígenas e populares das 3000 espécies que o Instituto Nacional pela Proteção Industrial tornou pública no mundo para combater a biopirataria, pois o waraná está naquela lista.
Em tese, isso fere a Lei Nº 9.279, de 14 de maio de 1996, dita lei da Propriedade Industrial. Em vários itens do Art. 124. No parágrafo X, pois induz falsa indicação quanto à origem, procedência, natureza, qualidade ou utilidade do produto, pois deixa entender que quem produz aquele produto é quem usa aquela palavra para apontar a sua própria produção. No parágrafo VI, pois waraná, como vimos, é no uso “termo comum empregado comumente para designar uma característica do produto quanto à natureza, nacionalidade e qualidade”. E sobretudo no parágrafo III, pois privatizar um termo que designa algo especificamente sagrado para significar nada mais e nada menos que as formas materiais da sua profanação, como mínimo “atenta contra liberdade de consciência, crença, culto religioso ou ideia e sentimento dignos de respeito e veneração”.
Mas citamos a lista do INPI e a lei da propriedade industrial, que tutela e limita o uso de nomes de fantasia no registro das marcas, só para esclarecer melhor o contexto.
Para nós o que está verdadeiramente acontecendo não é questão económica. Não se trata de uma guerra comercial entre David e Golias pelo renome do nosso waraná, mesmo que seja também isso. Nem sequer se trata de um corriqueiro assunto de biopirataria, mesmo que caberia falar disso...... E nem sequer o que nos preocupa é mais uma profanação das nossas crenças tradicionais: a ignorância tem nela mesma sua própria punição.
Se fosse tudo isso o que é verdadeiramente importante para nós, não estaríamos escrevendo para os Senhores.
Não. Na nossa visão, outra coisa está em jogo: o que está em jogo é o próprio Wará, que é universal. As que estão sendo perigosamente minadas, as que estão sendo brutalmente violadas, são as nossas línguas brasileiras, a língua portuguesa tanto quanto a língua sateré, como livres instrumentos ao serviço da comunicação entre seres humanos. Pela apropriação particular e arbitrária, pela privatização de palavras fruto da história e da livre interação social, e sua utilização para significar o contrário do que elas significam, a comunicação vai ser mutilada, poluída, falsificada, e a base da vida social desmorona, a raiz da vida social vai secando. Isso não podemos deixar que aconteça!
O que que nós queremos então?
Queremos que a Academia Brasileira de Letras, e junto com ela a Academia Amazônica de Letras, tome em consideração este fato:
na consciência dos consumidores avisados, dos movimentos mundiais em defesa dos camponeses como guardiões consuetudinários do patrimônio genético da humanidade e dos ecossistemas ligados à agricultura tradicional, no conhecimento informado dos atores sociais e institucionais, incluindo agências das Nações Unidas como FAO e PNUD, que se preocupam para um desenvolvimento sustentável, na cultura gastronômica internacional, a palavra waraná chegou a ter um significado específico preciso e unívoco: trata-se do guaraná nativo, cultivado e cultuado na forma tradicional pelo Povo Sateré-Mawé.
Consequentemente, essa palavra, "waraná", ao nosso ver já poderia, deveria ser legitimamente considerada de uso comum e cada vez mais amplo na língua portuguesa, e encontrar abrigo nos dicionários.
Isso com certeza repercutiria quase que automaticamente nos outros idiomas!
Nos apelamos especificamente à Comissão de Lexicografia e Lexicologia da Academia Brasileira de Letras, mas também a todos os Acadêmicos, brasileiros e amazonenses, para que se posicionem nesse sentido e nos ajudem a proteger esse patrimônio, que não pertence a uma pequena nação indígena que talvez alguns achariam até melhor de comemorar como extinta, mas à humanidade.
Nos ajudem a resgatar o valor da Palavra, pois a escolha de negligenciá-lo concerne diretamente e afeta simbolicamente a liberdade de expressão de todos os seres humanos.
Simão, Terra Indígena Andirá-Marau, 22 de novembro de 2018
José de Oliveira dos Santos Silva.
Presidente da Livre Academia do Wará
*Carta idealizada no contexto do Grupo de trabalho da LAW para a preparação do projeto "Sehay poti - as palavras antigas".
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Referendada pela Assembleia do Consórcio dos Produtores Sateré-Mawé dia 23 de janeiro de 2019
Sérgio Garcia Wara
Presidente do Consórcio dos Produtores Sateré-Mawé
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Referendada pela Assembleia do Conselho Geral da Tribo Sateré-Mawé dia 16 de setembro de 2022
Obadias Batista Garcia.
Presidente do Conselho Geral da Tribo Sateré-Mawé